sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Parábola

“Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome; explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos; eu gritei de boca escancarada, expondo a textura da minha língua exuberante, indiferente ao guardião escondido entre meus dentes, espargindo coágulos de sangue, liberando a palavra de nojo trancada sempre em silêncio no veludo desse estojo, era eu o irmão acometido, eu o irmão exasperado, eu, o irmão de cheiro virulento, eu que tinha na pele a gosma de tantas lesmas, a baba derramando do demo, e ácaros nos meus poros, e confusas formigas nas minhas axilas, e profusas drosófilas festejando meu corpo imundo.”

Você diz que parece uma maluca repetindo coisas que são apenas suas para alguém que talvez não entenda nada. Eu sinto saudade de quem que você é, mas soterra, camufla o coração nos novos vestidos, na unha agora vermelha, nas sandálias que são o que você realmente sempre foi. Uma mulher de carne, linda, os olhos que eu observo sempre por dois segundos intermináveis antes de te beijar, sentido o peito disparando junto com a sensação sem nome que talvez defina o que somos nós dois juntos.

As coisas são e realmente parecem difíceis, tudo é travado em uma chuva pesada de situações que já nos aconteceram, os beijos, os desencontros, o tesão reprimido na experiência real de viver uma versão moderna da parábola do filho pródigo, eu querendo você como na ficção André cobiça Ana, fúria, loucura e vontade dominando qualquer atitude que a razão absoluta possa tomar, você reluta ao pecado da carne que é quase fraterna perante seus olhos, mas eu, menino que cresce tendo no espelho, ou na irmã, a única coisa que reconhece como desejo, e quer socar o mundo pra transformar tudo o que lhe foi proibido em uma realidade de casal fugindo da vida mediterrânea pra cultivar na América do Sul o sonho de trabalho e sustento. Trabalho e tempo lento. Trabalho e fruto. Fruto esse, sagrado mesmo no que queremos chamar de profano, mas nosso fruto, ou fruto único da nossa vontade.

Eu queria dar esses passos curtos, parecidos aos do diabo, em sua companhia, vivendo sob o céu desta cidade ou de outra qualquer, embaçada pelas nuvens frias que um dia brindamos ao caminhar pela Avenida Paulista em Janeiro, mesmo sabendo que o desejo é sempre impossível, senão não seria desejo, talvez no trabalho se encontre a solução para o abismo da sua cólera e desconfiança. Talvez no exemplo dos mais antigos encontremos o silêncio, a perseverança, a sabedoria, e para além do pecado poderemos conquistar no chão de qualquer casa o prazer de sentir o peito do outro, mesmo entre as chagas de tantos desencontros que nos trouxeram até aqui, e assim poderemos, mais fortes, comprar o pão que nos alimentará e trará nossa redenção. O pão, o trabalho. O fruto.